Oi, sumida?!

de vez em quando, tenho vontade de escrever nada muito sério ou o novo grande romance americano. só escrever mesmo. tem tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo agora que chego a ficar agoniada por não ser polvo e por ser tão desgraçadamente procrastinadora, mas as good as it gets.

pego-me querendo fazer várias coisas e acabo não fazendo nem uma delas. é triste. dia vem, noite vai e eu leio. às vezes, choro no chuveiro (a cara fica menos inchada), tomo mais café do que o recomendável e ferro ainda mais meu estômago, que agora começou a doer. os diagnósticos ficam empilhados em um canto da estante. eles me encaram e finjo que são velhos amigos esperando que lhes retorne a ligação, mas nunca telefono para ninguém.

os remédios mudaram. tentei fazer coisas de gente adulta. falhei miseravelmente.

a mesma chata de sempre.

We’re going through the motions*

Minha filha mais velha me acha a pessoa mais autoconfiante que ela conhece.

Quando me descreve, autoconfiança é o que vem em primeiro, seguido de “devoradora de livros”. O que ela não sabe é que foi um longo processo para chegar no estágio onde me encontro, em que consigo transmitir autoconfiança (que vacila mais vezes do que o desejável).

Foram anos me achando feia e inadequada em todos os ambientes frequentados. Sou estrábica, gorda e meu cabelo começou a encrespar, quando entrei na adolescência (até então, era liso escorrido), para completar, eu usava um corte de cabelo para lá de duvidoso. Foram os livros que me salvaram e a minha inteligência (não tenho porque ser modesta quanto a isso). Percebi, desde cedo, que precisava de uma armadura para me posicionar no mundo e as leituras foram o material que usei para forjá-la. Então, acabei me destacando pelo que sabia, não pelo que eu era. O que, naquela época, não era lá muita coisa.

Só que os anos passaram e comecei a me incomodar com a imagem que tinha de mim. Trabalhei isso anos na terapia. Passei anos demais ouvindo que era feia, vesga, gorda, desconjuntada de várias pessoas que me rodeavam, importantes para a minha formação. O olhar do outro moldou o que eu via no espelho e não era nada bom, nada.

Fui começar a me libertar disso no ano em que me mudei para uma cidade do interior de São Paulo, onde me viam como “a menina da cidade grande” e lá pude começar a me reinventar, com a ajuda de tudo que já tinha lido. As pessoas não enxergavam em mim a menina desconjuntada, mas sim a garota que tinha lido mais do que todo mundo, sabia músicas maneiras e se vestia de um jeito excêntrico e pintava o cabelo de vermelho 666 (jeans rasgado, camisa xadrez e all star preto – auge do movimento grunge). Que fase maravilhosa! E coincidiu com a minha entrada na adolescência. Quando voltei para a capital, estava um tanto transformada, mas como me inseri no mesmo ambiente nocivo de antes, retrocedi um bom pedaço.

O processo de mudança ganhou novo gás no ano  em que entrei no cursinho pré-vestibular. Cercada de pessoas tão ferradas financeiramente quanto eu e com o mesmo desejo de saber. Era uma turma bem eclética e estranha. Fui acolhida ali. E foi ótimo. Mais uma vez, eu era quem queria ser, a pessoa que estava atrás do reflexo no espelho. E comecei a me achar bonita também, passei a me ver de um jeito diferente. E a gostar do que via.

2017 tem sido um ano de mudanças que eu escolhi fazer. Não tenho mais problemas de autoestima ligados ao físico. Na verdade, meio que apertei o botão do foda-se para o que as pessoas acham ideal, padrão e o diabo a quatro que for. Canto em público, danço no meio da rua, rio alto, uso minhas roupas excêntricas, uso maquiagem (o que um dia foi impensável para mim). E gostaria de ser tão confiante assim em outros setores da minha vida.

Mas sei que é um processo e eu ainda não terminei. Já consigo ver que sou boa em algumas coisas e ótima em outras.

Antes, eu me achava apenas um imenso desperdício de espaço.

E devo agradecer à minha filha por sua generosidade e seu olhar sobre mim, que abriu meus olhos.

*I’m a mess, Ed Sheeran.

And I love you the best way I know how*

josephcampbell

Todos os dias, eu me esforço para levantar. Às vezes, tenho algum sucesso em sair inteira da cama, noutras, percebo que o corpo sai, mas a mente e a alma ficam sabe D’us onde.

Todos os dias.

Desde 2013, entrei em uma espiral de acontecimentos que, olhando de longe, só podemos chamar de vida, mas de perto, sendo afetada e vendo outras pessoas amadas atingidas, a amplitude fica bem maior. Ano passado foi pauleira. É impossível não me contaminar com o que está acontecendo desde então. Mas eu tento.

Todos os dias.

Ontem, um amigo ficou conversando comigo até tarde e falei para ele o quanto estava difícil não sucumbir ao vício. Estava salivando por fazer o primeiro corte depois de muito tempo. É bom conversar com quem não julga e não vem com lição de moral. Ele entendeu. E não fez cara de piedade, nem foi condescendente. Falei sobre o vazio. Tenho me sentido vazia.

Todos os dias.

E eu não me cortei.

Não importa o tamanho do buraco, preciso lembrar que sempre há alguém. Encaro o abismo, ele me encara de volta, mas se eu olhar para o lado, ali estará uma pessoa que pode me ajudar. Às vezes, essa pessoa é quem eu menos espero. Na verdade, é alguém que nunca espero.

Fui salva mais uma vez. Pelo amigo querido que me acompanha há anos. Pela promessa que fiz à amiga-irmã-filha-camarada (e não gosto de quebrar minhas promessas). Pela conversa com alguém que entende, ensina e aprende em igual medida, falando diretamente, sem rodeios e sem me tratar como uma incapacitada mental. Fui salva por alguém a milhares de quilômetros de distância de mim e que teve a sensibilidade de perceber que eu estava encarando o abismo por tempo demais.

E tem sido assim.

Um dia de cada vez.

Todos os dias.

*Siren Song, Bat for Lashes

Arm yourself because no one else here will save you*

Cassie
Cassie Ainsworth, personagem de Skins, 1ª geração

 

Em fragmentos.

Sinto-me vencida.

Pela vida, pelas pessoas, pelo mundo, pela História.

Acabamos aqui.

Não há por que esperar um fôlego novo.

Há contaminação em todas as partes.

Não há cartolas.

Não há coelhos.

A realidade matou a mágica.

A humanidade matou a lógica.

A razão enlouqueceu.

Sinto-me vencida.

Meus pares todos se perderam.

A minha mão não é boa,

Para esta partida ou qualquer outra.

As cartas estão viciadas.

Há fumaça em toda parte.

Ninguém sabe o que queima.

Ninguém se importa.

Fomos vencidos.

 

*You know my name, Chris Cornell.

Rose Madder

Um dos escritores que mais gosto é Stephen King. Leio algum livro dele sempre que quero escapar do mundo real. O da vez foi Rose Madder.

Numa época em que assédio e violência contra mulher são cada vez mais debatidos, em que vemos a naturalização e a espetaculização de agressões, o livro me pareceu muito apropriado, a começar pelo título. Em uma possível tradução, podemos inferir que se trata de uma Rose mais louca, desatinada; embora no contexto do livro se trata da cor púrpura que a personagem principal, Rose McClendon, uma mulher frágil e submissa ao marido, encontra em uma gota de sangue no lençol da cama do casal.

Rose Daniels é casada, no começo da história com Norman Daniels ( e pipocam referências ao outro Norman, o Bates). O marido, um policial tido como exemplar, é na vida íntima um psicopata mordedor. E Rose descobre isso ainda na lua de mel, quando ele lhe deixa uma cicatriz plúmbea na forma de sua arcada dentária.

Passam-se 14 anos até que Rose decida deixá-lo, num impulso motivado pela visão daquela gota de sangue. Nesse tempo, houve violações, estupros muito violentos e cruéis, mordidas sem fim, assédio moral, abuso psicológico, surras e mais surras, uma das quais provocou o aborto de um bebê tão desejado por Rose. Contudo, só depois de ver aquela gota de sangue, ela sai de casa com a roupa do corpo e o cartão bancário de Norman.

Um dos pontos interessantes é que o marido violento e policial fixa-se no “roubo” do cartão para justificar a caçada que apreende à vaca da mulher que ousou deixá-lo. Seu lado homem da lei procura de todas as formas reduzir seus atos à simples aplicação da punição para o roubo.

Como um homem perseguidor e psicopata, ele consegue pensar como se fosse a vítima e age como ela agiria para seguir seu rastro. Norman é um predador, Rose, sua presa. Essa é a dinâmica. E passo por passo, sem qualquer pressa, ele sabe que encontrará a mulher e a fará pagar por seu crime (ter roubado o cartão) e a fará sofrer por ter ousado deixá-lo.

Enquanto isso, Rose, fora da órbita nefasta do marido, começa a desabrochar (perdoem o trocadilho infame). Salva por uma associação de mulheres que ajuda vítimas de violência doméstica, ela encontra trabalho e até mesmo uma nova profissão e descobre que é muito boa no que faz. Rose se transforma na pessoa que sempre teve potencial para ser, caso não fosse a sombra de Norman sobre sua figueira.

Mas para onde foi toda aquela raiva, toda a humilhação, o feto morto, a dor de todas as perdas? Em se tratando de Stephen King, é aí que entra o componente sobrenatural. Rose encontra em uma loja de penhores um quadro exótico, que retrata uma mulher de costas, trajando um quíton cor rose madder, que parece olhar para um templo em ruínas. Sem saber o motivo exato, ela é imediatamente atraída pelo quadro e o leva para casa, seu apartamentinho alugado com a ajuda da instituição de mulheres.

Com o passar do tempo, ela vê mudanças na pintura grosseira, a mulher se parece cada vez mais com ela, que até mesmo adota a mesma cor de cabelo e penteado. E a cada noite se vê mais absorvida pelo quadro, até entrar dentro dele. Lá, ela conhece duas mulheres: a Rose Madder e uma outra vítima de Norman, que morreu em um caso policial, envolvendo ele e seu parceiro. A mulher fora vítima de estupro e mordidas. Lá ela também conhece o touro de um olho só, que também gosta de morder, uma alegoria para seu ex-marido.

Rose Madder pede que Rose McClendon (que agora adota seu sobrenome de solteira) recupere a criança que está no meio do labirinto do templo visto no quadro. A criança é a mesma que Rose perdeu. Aos poucos, damo-nos conta de que todos os sentimentos ruins que a Rose frágil e submissa a Norman sentia formaram a Rose mais louca, desatinada e ela busca vingança e terá o que procura.

Em paralelo, Norman continua sua caçada, perdendo cada vez mais  o contato com a realidade e sucumbindo às vozes em sua cabeça. Sua transformação no touro alegórico vai acontecendo à medida em que ele se aproxima de sua Rose. Em sua trajetória, ele deixa mais corpos e mais mordidas do que jamais deixara.

Não gosto de pensar que o livro se trata de uma história de superação. É um dos livros mais crus e angustiantes de King. Sem qualquer preparo, o autor nos lança na mente doentia de Norman, um sujeito cheio de perversões, mas que se esconde sob o disfarce perfeito e quase indestrutível de policial. Rose é uma mulher como tantas outras, presa em um relacionamento violento, sem qualquer possibilidade de fuga, que é despertada por um fato banal.

A ideia do quadro representar um duplo (der doppelgänger, Otto Rank, 1914) não é nova na literatura. King alia essa teoria a do quadro como meio de desenvolvimento da ação (tema explorado por Oscar Wilde em O retrato de Dorian Gray O retrato oval, de Edgar Allan Poe, só para citar dois exemplos). Rose Madder seria o Dr. Jekyll de Rose McClendon. São duas imagens da mesma mulher, contudo são dois seres que, a princípio, não poderiam ser mais diferentes.

Rose confronta sua máscara duas vezes. A primeira quando se depara com aquela mancha púrpura de sangue. Isso a desestabiliza e abre espaço para que seu duplo se manifeste mais adiante. E, ao se ver cara a cara com Rose Madder, ela começa a repensar a própria personalidade, desenvolvendo-a a partir do momento em que tem a oportunidade de “ver-se” para além da persona criada sob a tutela de Norman.

Ao sair da casa do marido, Rose dá início ao seu processo de individuação (ideia levantada por Jung) e o quadro abre espaço para um diálogo interno que propicia a transformação e o acerto de contas de Rose com seu duplo e de Rose Madder com o Touro-Norman, que tanto lhe feriu.

Assim, temos o duplo que se destaca e se autonomiza, vindo a ser o agente catalizador da mudança do eu-primeiro. A nova Rose só se torna possível no momento em que se descola do seu duplo e deixa que ele aja, sabendo que Rose Madder faz o que faz em favor próprio. O acerto de contas é mais dela do que de Rose McClendon.

Para a frágil Rose do início do livro ver-se separada de Norman é o suficiente. Ao fugir de casa, ela espera acabar com aquela situação em sua vida. Não tem quaisquer perspectivas além dessa. Não espera reconstruir sua vida, não pensa que tem qualquer valor que não ser a mulher-empregada-saco de pancada de Norman Daniels. Ao se encontrar com seu duplo, ela se dá conta que também é, em alguma instância, aquela mulher enlouquecida, dolorida e sofrida, que tem sim desejo de vingança. A única coisa que seu “outro” quer é adquirir existência própria para acabar com outro duplo: o de Norman.

As mulheres são criadas para se confinarem em um caixão de doçura e submissão. E ali permanecerem até que ele seja baixado à terra. Muitas têm dificuldade para lidarem e expressarem sentimentos e emoções que fogem ao script esperado. Quando muito, desejam apenas sair da situação de dor. Em algum grau, tudo que sentem e não condiz com o esperado, é internalizado e acumulado. Algumas vezes, isso explode.

E elas são chamadas de loucas.

Em algum momento, todas somos Rose Madder. 

13 reasons why

13reasons2

Daí que saiu a série do livro na Netflix e eu, aproveitando que estava sozinha, fiz maratona da sexta para o sábado.

Eu sei o que me leva a gostar das coisas a que assisto, que leio, que ouço. E sei também porque achei a série melhor do que o livro (e olha que eu gostei bastante dele). E, com certeza, sei porque assisti a um episódio depois do outro e chorei de soluçar no final.

Ezra Pound disse, certa vez, que a literatura é a linguagem carregada de significado. Ele também desenvolveu um movimento artístico chamado de Imagismo, defendendo a ideia de que a imagem é o que apresenta um complexo emocional e intelectual em um instante de tempo.

Ele falava sobre poesia.

A minha opinião é que isso se aplica também em outras formas de arte. O que me leva a gostar de verdade de alguma coisa, seja livro, filme, série, música é o significado que tem para mim e as imagens que completam o que chamo de lacunas do meu próprio entendimento.

E 13 reasons why cumpre esse papel.

O tema, de difícil digestão, é bullying dentro do ambiente escolar.

Há um livro de Erving Goffman, Manicômios, Prisões e Conventos, em que o autor disserta muito bem sobre a escola como uma instituição total. A escola, segundo o autor, está no 4º grupo de instituições totais, aquelas “que são estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado uma tarefa de trabalho”. Outro ponto interessante é que, em uma instituição total, há uma ruptura nas barreiras que separam as três esferas da vida e tudo passa a ser realizado em um único lugar, sob uma única autoridade. Há o grupo que controla e os controlados. E há regras implícitas que são as mais importantes a serem respeitadas.

Dizem que a escola é o espelho da sociedade, assim quanto mais violento e preconceituoso for o meio social, isso se refletirá no micro-cosmos escolar. E, convenhamos, não há mais formação social dentro da escola. Há regras, há modelo pedagógico, há feiras, há o diabo que for, mas não há formação social.

E o aluno é aquilo que ele vivencia (sempre há uma ou duas exceções).

E o que tudo isso tem a ver com 13 reasons why?

Tem a ver com esta notícia aqui: Jovem se mata depois de sofrer estupro e bullying.

Hannah, a personagem central, também se mata, depois de passar por um longo processo de bullying e um estupro. Tudo começa com uma foto tirada em que aparece sua calcinha, no momento em que ela descia por um escorregador. Quem tirou a foto foi o garoto pelo qual ela estava apaixonada no momento e em quem deu seu primeiro beijo.

A foto se espalhou pelo colégio como fogo em um rastro de gasolina. A direção não tomou qualquer medida punitiva. Hannah virou a vadia, a fácil.  E esses adjetivos a marcaram como ferro em brasa marca o gado.

Quando você é uma garota com esse tipo de marca acaba virando um alvo. E ninguém dentro do seu ambiente escolar, dentro do micro-cosmos onde você passa a maior parte do seu tempo, vai acreditar no contrário. Por ser vadia e fácil, você se transforma em um receptáculo, onde despejam, além de xingamentos, todo tipo de fluídos corporais, aceitando você ou não.

E foi assim que Hannah se viu violada diversas vezes, até culminar em uma cena de estupro tão forte, que fiquei com o estômago embrulhado o resto do fim de semana.

Não adianta pensarmos que é apenas ficção adolescente. É o que acontece no mundo real. A cada dia, aumenta o número de relatos de meninas que foram agredidas verbal e fisicamente dentro da escola.

13 reasons

As pessoas se importam? Sim, mas não o bastante.

As pessoas têm ideia do que realmente acontece dentro da escola? Mais ou menos.

Estamos seguros? Não sei. A sociedade está?

Então, é por isso que gostei de 13 reasons why, muito mais da série do que do livro. Ambos, carregados de significado para mim, que já tive minha cota de eventos que nunca serão esquecidos, e as imagens entregaram toda a complexidade de um sistema bichado em sua raiz.

Ah, e a trilha sonora é muito boa.

paulausterGhosts

A verdade é que na maioria dos dias, eu me sinto tão cansada que não tenho vontade de falar, ouvir, sentir, fazer, existir.

A verdade é que não acredito que alguém queira saber minha opinião sobre tudo isso que está aí. 

A verdade é que eu acho que não sou só eu que estou cansada.

Acho que todos estamos.

E não apenas cansados, mas desesperançados, desiludidos, derrotados.

Então apenas sigo, respirando do jeito que dá.

Do jeito que dá é uma boa resposta para um montão de perguntas.

E nem precisa justificar.

 

“And so I try to be kind to everything I see”*

‘Cause it seems things today
There ain’t no magic in ‘em
They don’t cut the grade
Like they used to. – Depression Blues, Neil Young

Ainda sobre Uma vida pequena, demorei para entender que o livro foi um imenso trigger warning para mim. Terminei a leitura e fiquei mal, os pensamentos obsessivos voltaram e me fechei, que é o que sempre faço quando tenho uma crise.

Acho que não é mais segredo que tenho uma coleção de transtornos mentais para controlar. Levou um bom tempo para que eu reconhecesse isso e buscasse ajuda. Sentia que era vergonhoso ser fracassada mentalmente. Precisei e ainda preciso de ajuda para lidar com minha cabeça.

Há dois meses, em um episódio de burrice extrema, parei com meus medicamentos. Como fiz algumas mudanças em minha vida, achei que conseguiria lidar com meus pensamentos, que estava curada. Bem, posso resumir o resultado dessa rebeldia em uma frase: deu merda.

E precisou da história de Jude St. Francis para eu perceber o poço em que me afundava. As coisas, de forma gradual a princípio, foram perdendo seus contornos, cores e motivos. Nada me alegrava, nada era importante o bastante. Eu não sentia amor. Estava apática para comigo e com os outros. Não comia, não dormia. Estava no automático cada vez mais.

E não me dei conta disso até ler o livro.

Os remédios me ajudam a me dar conta, a perceber melhor os surtos e separar os pensamentos obsessivos dos outros. Consigo ver, com a ajuda deles, meus próprios contornos, tanto físicos, quanto mentais. Consigo perceber e valorizar as outras pessoas. Deixo de ser apenas a minha mente, a parte mais obscura e perturbada dela, e meu ego destrutivo.

E eu tento. Esse tem sido o ano de fazer coisas novas que podem me proporcionar alegria e prazer. Saí para pular carnaval, cantei no karaokê (muito mal) rodeada de desconhecidos. Estou fazendo exercícios físicos, tocando um projeto, escrevendo. Evito as preocupações que não fazem parte do agora, do hoje. Evito olhar o abismo para ele não retribuir o olhar.

Procuro olhar a tudo e a mim principalmente com mais gentileza.

*Citação de Uma vida pequena

Jude St. Francis

“What he knew, he knew from books, and books lied, they made things prettier.” A little life,  Hanya Yanagihara.

Desde o ano passado, quando li a tetralogia de Elena Ferrante, criei uma nova categoria de livros: os Ferranti. E Uma Vida Pequena entra nessa classificação. É o meu Ferrante de 2017.  Um livro que precisei ler aos poucos, o que é raro para mim, mas se não fosse assim, corria o risco de ter uma síncope.

Comecei minha análise pessoal pelo nome da protagonista principal, Jude St. Francis, o Judas, nome que ganhou na infância e, que dentre outras inúmeras coisas, serviu-lhe como indício do que ele realmente era. Em contrapartida, há o sobrenome, St. Francis, um indicativo do que seria seu futuro. Enquanto conhecemos Judas como aquele que traiu o Filho do Homem; alguém consumido pelo próprio remorso e arrependimento, há quem diga que Judas não fez mais do que cumprir sua parte em um trato pré-estabelecido, sendo o vetor do Cristianismo. Uma peça necessária dentro de um projeto arquitetado pelo mesmo Deus que engravidou uma virgem e precisava de seu filho morto para se afirmar como único.

Mas é o sobrenome que nos diz quem é o Jude de Uma Vida Pequena.

Dante Alighieri diz, no Canto XI, Paraíso, em A Divina Comédia:

[…] nacque al mondo un sole […]

(nasceu ao mundo um sol.)

O poeta faz referência ao nascimento de São Francisco de Assis. O santo que carregou mazelas físicas por toda a vida, depois de ter passado pela guerra (entre Assis e Peruggia, no século XIII). Depois de sua conversão, São Francisco passou a viver de esmolas, despiu-se de sua origem nobre, vivendo como um eremita.

Jude St. Francis absorveu toda simbologia de seu nome, enquanto seus amigos tentavam lhe mostrar que era em seu sobrenome que repousava sua verdadeira essência. Mais do que falar sobre relacionamentos e amizades, o livro trata do desenrolar de uma vida sujeita a percalços, aos horrores, ao inominável, onde também há momentos de beleza que salvam a humanidade que há em cada um.

A vida de Jude se polariza entre momentos de felicidade inacreditáveis (e o adjetivo aqui é devido à crença dele de que ser feliz não é uma coisa destinada a si) e o inferno onde ele passou a infância e parte da adolescência que lhe deixaram sequelas permanentes.

Uma vida pequena espremida entre o trauma e o se, pincelada por instantes fora da armadura necessária para viver apesar de.

“But what was happiness but an extravagance, an impossible state to maintain, partly because it was so difficult to articulate?”

Recomendo muito a leitura. A melhor que fiz até agora. E um dos melhores livros que li em minha vida. Tem um quê de Philip Roth e foi uma das melhores obras que a nova literatura americana produziu nos últimos tempos.

5/5

O Mundo de Gaya

Um Mundo de Paz e Luz

Eu, nós dois e todo mundo

Sobre amor e falta dele, otimismo, utopia e desconforto. Uma caricatura de pós-moderno em um mundo todo louco.